100+Tradições

marina pedrosa
6 min readOct 5, 2023

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Crédito: Pinterest

'’Saber ser solitário é fundamental para a arte de amar. Quando conseguimos estar sozinhos, podemos estar com os outros sem usá-los como forma de escape." — Bell Hooks

Passei os últimos meses refletindo sobre a arte de se relacionar. Ponderando sobre perfis de pessoas, as necessidades de cada um no amor, começos e términos de ciclos, monogamia, não-monogamia, autoamor, relacionamentos abertos, e eventuais celibatos — quando uma amiga de longa data me impactou com a frase acima.

Como boa apreciadora das palavras, prezo com carinho os momentos que sou atravessada por uma frase que me faz olhar para dentro e contemplar — e saber ser solitária, coincidentemente, é uma outra arte que tento dominar há anos.

Talvez por ter ficado tantos anos fisicamente longe de tudo que era familiar, e descobrir ali uma nova independência e senso de solitude; ou talvez por uma necessidade extrema de ficar em paz dentro da minha própria pele — só sei que com o passar das décadas, tenho entendido que minha cura e meu veneno são o mesmo: dominei a arte de ficar sozinha até demais.

Não que os meus ciclos sociais e repertório amoroso não sejam repletos de raridades em forma de seres humanos, encontros predestinados, memórias inesquecíveis e pessoas que marcaram a minha vida para sempre. Minha trajetória, sem dúvidas, sempre foi composta de enredos e romances dignos de roteiro de filme, mas é impossível não admitir que o relacionamento que mais me trouxe e traz frutos até hoje, é o comigo mesma.

De mãos dadas com a solidão, desvendei muito sobre a minha própria alma e psique. Como amo, admiro, odeio e sinto repulsa; como interpreto e processo diversos sentimentos, vontades, delírios e fantasias. Me envolvi com os meus próprios sonhos e traumas, e me joguei de cabeça neles para entender de onde vinham, e para onde vão. Sozinha, descobri a sensibilidade, delicadeza e vulnerabilidade do meu amor — às vezes intenso como uma bomba atômica, outras acolhedor como um abraço com saudade.

Demorei um tempo considerável para encontrar um lar em mim mesma, e me sentir confortável na minha própria loucura. Hoje vivo em paz com meus devaneios e manias, e encontro uma morada nas minhas insanidades. Como conseguir explicar, e enfim, dividir esse espaço com o outro, quando tanto da minha essência se baseia em individualidade?

Nós mulheres temos naturalmente uma conexão com o Divino — um vínculo sagrado com o nosso poder feminino e a nossa veracidade. Temos a capacidade de gerir outra vida, um anseio maior em se importar com o outro, cuidar, nutrir. Somos intuitivas e temos instintos apurados — sejam maternos, selvagens ou vitais. Por consequência de uma sociedade patriarcal ultrapassada e uma cultura de padrões inalcançáveis, também somos impostas à uma vida de expectativas e uma constante pressão interna e externa.

Em meio a luta de se desvencilhar de estereótipos, tenho observado um padrão potente se repetindo este ano, em mim e na grande maioria das mulheres a minha volta: todas estão, da sua própria maneira, se reconectando com um sentimento de libertação. Se fortalecendo com a sua estrutura, revigorando o seu eu mais íntimo. Todas, de algum modo, desvendando seus verdadeiros propósitos, aprendendo a se desprender, e se rompendo dos seus moldes, imposições da sociedade e do barulho externo.

Mais do que nunca, me sinto conectada com a minha alma — no mais puro entendimento do que é a minha essência e natureza — e vejo o quanto as mulheres ao meu redor também estão nesta frequência.

Foi-se o tempo onde um relacionamento definia o nível de realização na vida de uma mulher, e os homens tinham controle do que fazemos com nossos corpos, roupas, personalidades e vontades. Mas também não faz tanto tempo assim… Quando paro para refletir, reviro os olhos ao lembrar que há poucos anos atrás, eu ainda discutia com ex-namorados sobre as roupas que uso, a cor do meu cabelo, a magnitude da minha personalidade.

Me recusei a ser colocada em caixinhas ou categorias a vida toda, e mesmo assim, em retrospectiva, percebo que cedi (ou fui coagida a ceder) à algumas exigências em relacionamentos passados. Em nome do amor talvez? Pode até ser, mas me faz questionar se existe um espaço dentro do amor, ou em uma vida a dois, onde é possível ser uma metade e inteiro ao mesmo tempo.

Tenho contemplado tanto sobre o que é "tradicional." Por definição, a "tradição" é simplesmente a transmissão de costumes, comportamentos, rumores e crenças de uma comunidade, com os seus elementos sendo transmitidos entre gerações, criando uma cultura. Tenho vivido uma certa desilusão e dilema com o que o mundo Ocidental considera tradicional — e quanto mais caminho pela ancestralidade, mais me distancio das normas e concepções que esta sociedade parece me impor para o futuro.

Não tenho o sonho de casar e passar o resto da vida com a mesma pessoa — e ainda sou obrigada a ouvir o clássico "Como assim?! Casar na praia descalça é tão a sua cara!" (não é). Também não quero ser mãe e essa realidade se torna cada dia mais distante na minha vida — apesar de admirar infinitamente a minha própria e todas as mulheres que escolhem este caminho. Cada vez mais quero ser nômade, sem ter um endereço fixo, rodando livre pelo mundo, e longe de priorizar a compra do meu primeiro imóvel. Gosto de chocar os mais velhos aparecendo em ambientes familiares de cabelo roxo e a barriga tatuada, e quando começo a falar da minha carreira corporativa, até hoje vejo alguns queixos caírem impressionados. As pessoas continuam com o péssimo hábito de julgar o livro pela capa, mas ainda bem que por aqui, há uma biblioteca inteira de contos surpreendentes e textões com frases grifadas.

Quero descobrir novas possibilidades — sejam elas de se relacionar, de se comprometer, de sentir ou de viver. O conceito de "fluidez" nunca esteve tão em evidencia na minha vida, e das lições que aprendi neste ano intenso, esta foi a maior: preciso aceitar o fluxo, e mais do que isso, preciso entrar em alinhamento com o meu fluxo — nadar no sentido da corrente, mas sem ser levada pela correnteza. Não é a toa que tudo no universo tem o seu fluxo singular, e não me surpreende que a solitude seja a maior impulsionadora do meu.

Em meio de conversas profundas e boas reflexões, uma fada sensata disfarçada de irmã da vida, me relembrou disso com palavras doces: “Acho que agora para você entrar em um relacionamento de novo, só encontrando alguém tão livre quanto você.”

Ouvir isso foi um gatilho que me obrigou a revisitar outro texto — um conto que escrevi em 2018, sobre um comentário que ouvi em 2013, de um cara que me conheceu por 20 horas em Barcelona.

Lendo esse texto de 2018, inspirado em um encontro de 2013, percebi que ouço e sinto isso uma vida toda. Talvez eu nunca me encaixe no "tradicional" — muito menos na ideia de não ser livre, ou autenticamente eu mesma, para caber na realidade de outra pessoa. Percebi que já pensava assim aos 19 anos, aos 25, e ousaram falar que os 30 poderiam mudar tudo. Ironicamente, os meus 30 anos só vieram confirmando o que o meu inconsciente já tinha certeza há anos.

Como o texto que revisitei outro dia, talvez eu leia este em 3, 5, 10 anos, mordendo minha língua e dando risada de mim mesma — mas não é essa a maior magia e poder da escrita? Eternizar pensamentos e emoções enquanto as processamos, como um registro lírico do nosso coração. E quem de fato sabe o que o futuro, destino e a fluidez aguardam?

Os tradicionais que me desculpem… mas é uma delícia se reinventar com os anos e se transformar junto das suas vulnerabilidades, na sua própria solitude. Deve até ser confortável ficar dentro da mesma caixinha para sempre, e passar uma vida inteira ocupando um espaço moldado exclusivamente para as suas margens. Porém tenho certeza que nasci e cresci para ser, e caber em qualquer lugar do mundo — sem limitações e sem mais tradições.

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