De Saída

Percebi que o outono tinha instalado sua inevitável chegada no Rio de Janeiro — depois de um intenso verão onde até o meu próprio suor parecia refrescante — quando todo dia, depois das quatro da tarde, um vento diferente começava a me envolver, me abraçar e me deixar arrepiada com os movimentos que o resto do ano soprava.
Com a pele reconhecendo futuras metamorfoses internas e externas, minha mente também se eriçou, se questionando: quais outras coisas me perfuram e me atravessam tão profundamente, a ponto de me arrepiarem da cabeça aos pés?
Minha consciência foi inundada por uma montagem frenética e caótica de imagens e situações que despertam todos os tipos de sensações na minha cútis. Inevitavelmente, a primeira foi um dos meus maiores pesadelos criativos: a página em branco.
Encarar páginas em branco, reais ou metafóricas, em meio à bloqueios criativos que me paralisam, têm me aterrorizado a vida inteira. É como se às vezes eu me perdesse em um vortex entre a minha introspecção e espontaneidade — sem saber onde me situar, onde me encaixo, sobre o que falar, como explicar o que sinto, sem ver um jeito de transformar pensamentos e ideias em matéria. Um arrepio sem igual, contornado por agonia e ansiedade — bem diferente da brisa leve, mas ainda com fervor, do outono carioca.
Envergonhada, percebi que há meses não sentava verdadeiramente de frente com a minha alma, e praticava o meu ato favorito de auto-cuidado: escrever. Não por trabalho, dinheiro, obrigação ou validação profissional; e sem prazos de entrega, feedback ou cadeias de aprovação.
Depois de uma vida inteira escrevendo para me conectar, atravessando uma correnteza de incertezas, água salgada e chá mate, me interroguei: por que eu escrevo, mesmo?! Porque, de alguma forma, escrever faz eu me sentir mais livre? Porque me liberta e desprende os meus pensamentos, desejos, sonhos, julgamentos e angustias?
Além da sensação de emancipação interna e a (necessária) faxina mental, conclui que preciso escrever para exercitar a compaixão, o foco, a sagacidade, a empatia, a memória e registrar o quanto tudo muda, se liberta e transmuta, dentro e fora de mim, todos os dias.
Passei o resto do outono me perguntando o que realmente me finca, e o que me aprisiona, nos meus maiores momentos de liberdade. Navegando contra a maré, quais são as âncoras que me mantém centrada quando perco completamente o chão? E afinal, todas as coisas que me deixam arrepiada são mesmo boas e positivas? Ou também são um sinal, desesperado, da minha intuição tentando me alertar do que pode me machucar?
Conquistar a liberdade, em qualquer uma das suas formas, moldes e potências, só pode ser um acordo com nós mesmos. Como em qualquer trato, alguma coisa precisa ser negociada em troca.
É da essência da liberdade — e de tantos outros sentimentos e estados de espírito— que ao ser alcançada, exista um câmbio, deixando algo valioso para trás na transação. Sejam nos maiores triunfos, levezas, evoluções ou transformações, sempre vai existir despedida na liberdade que se conquista.
Às 16h, com o sol baixando e o céu se colorindo em tons de rosa e laranja, a brisa carioca faz sua chegada, esbanjando livre-arbítrio. O tempo, carregando sua bagagem e acumulando movimentos, continua a impulsionar tudo que é sensível e não força o que já tem sua própria força.
O vento me contorna, relembra a sútil e potente mudança das estações, e me arrepiando da cabeça aos pés, sussurra, sem resposta: por que os maiores aprendizados sempre acontecem quando estamos de saída?