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marina pedrosa
4 min readJul 13, 2022

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Crédito: Kyla Rose Art

Cheia de dualidade e simbologia, a cobra é um dos animais mais respeitados e admirados em diversas culturas. Carregando significados de sabedoria, regeneração e sensualidade, estas criaturas se tornaram um paradoxo dentro de si mesmas com o tempo — há séculos trazendo consigo referências e reflexões ancestrais que questionam sua real magnitude.

Em algum momento do avanço da cultura ocidental, decidimos associar as cobras, e seu processo de troca de pele, à falsidade — transformando esse mecanismo de restauração e o próprio animal, em uma alusão de predador traiçoeiro, desconfiável e enigmático.

Mas o que não é de conhecimento comum, é que a troca de pele destas serpentes é uma consequência da evolução da cobra ao renovar sua pele danificada. Neste processo, a pele nunca se estica para se adaptar à expansão do animal — ela permanece a mesma, enquanto a cobra se desenvolve e muda internamente.

Mudar de pele, de muitas formas, fortalece a cobra — a obriga a viver por um período curto dentro de si mesma, com espaço suficiente apenas para sobreviver, enquanto se re-organiza para se libertar de sua antiga carcaça, e se encaixar em uma nova, cheia de modificações.

Um outro animal que também exibe o fenômeno da troca de pele é o camaleão. Diferente das cobras, os camaleões trocam de pele de acordo com o ambiente. Em alguns instantes, esses lagartos mudam de cor para intimidar predadores, camuflar-se ou encontrar parceiros. Para eles, este processo é indispensável e faz parte do cotidiano — simples, corriqueiro, e fundamental para a sua sobrevivência.

Assim como as cobras e camaleões, os humanos também trocam de pele o tempo todo: aproximadamente há cada mês, e aos poucos. Um processo imperceptível, lento e indolor. Nosso organismo nunca para de produzir células, nem de eliminá-las; cada célula é capaz de se manter viva por três a quatro semanas depois da sua formação.

O que faz que, de forma gradual e invisível a olho nu, os humanos também troquem de pele, incessantemente.

Trocar de pele é vital para nutrir, limpar as impurezas, renovar as células, e estimular a produção de novas camadas. Dá mais cor, brilho, saúde, e ajuda a curar todas as cicatrizes e feridas abertas.

Como um instinto do próprio corpo para se renovar, trocar de pele é conviver dentro de si mesmo, lentamente observando uma metamorfose interna — como se nosso próprio corpo promovesse uma sútil ampliação dos sentidos e percepções, nos dando a chance de habitarmos um novo casco. Como um escudo e um espelho, sentimos na pele toda a dor e delícia de estarmos vivos, antes de ocuparmos um novo espaço.

Mas como a maioria dos processos mais eficazes, trocar de pele é um procedimento demorado e progressivo. Vêm com o tempo — e só ele é capaz de nos fazer entender o momento certo de assumir uma nova epiderme. Até lá, a pele precisa engrossar, criar casca, ter vivência, cicatrizes, marcas. Até porque, expandir e crescer, sempre significa deixar marcas: estrias, manchas, rugas, traumas e vestígios de tudo e todos que passaram por nós.

E simplesmente porque se acomodar é um dos maiores incômodos da vida, trocar de pele nos obriga a nos reinventarmos. Nos dá a certeza que somos maiores do que o corpo que habitamos, o espaço que nos é reservado. Nos recorda a visão e tesão de que podemos sempre nos transformar e começar de novo. E esses períodos de metamorfose, são os que mais nos fazem viver, produzir e sentir tudo intensamente.

Dizem que as mulheres têm mais facilidade em trocar de pele e papéis. Afinal, não é nisso que nossas vidas sempre se consistem? Ter várias peles em um corpo só — ser mulher, mãe, filha, companheira, dona de casa, profissional, e muitas outras funções, tudo ao mesmo tempo?

Maquiamos nossas peles diariamente, nos transformando dia após dia. Em um horário somos mulheres de negócio, empreendedoras, líderes, sonhadoras, amigas fiéis, esposas, companheiras e namoradas; Em outro somos filhas, irmãs, tias, mães, um ombro amigo, um colo. Uma infinita troca de peles e personagens que poderiam apenas refletir a versatilidade, poder e sensibilidade feminina.

Acho que por isso sempre gostei tanto de trocar de cores e cortes de cabelo, países, línguas, grupos de amigos, estilos, culturas. Desapegar de padrões, expectativas e tudo que me limitasse a uma pele só e me permitisse ser várias ao mesmo tempo.

Talvez seja por isso que há séculos, mulheres sejam chamadas de cobras, camaleoas, bruxas... Trocam com facilidade de pele, de humor, de roupa, de personalidade — se adequam e se adaptam. São milhões ao mesmo tempo, nunca incompletas e sempre complementares. Afinal, mulheres inteiras não chegam de mansinho, não imploram migalhas e nem comem pelas beiradas — e isso sempre assusta.

Temos pele frágil, de fato, como vidro. Mas somos tão cortantes quanto.

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